Erika Hilton vai ao MP pela anulação de mudança na logo da Fundação Palmares

Confira o texto a seguir

20 out 2021, 17:52 Tempo de leitura: 14 minutos, 55 segundos
Erika Hilton vai ao MP pela anulação de mudança na logo da Fundação Palmares

Nessa quarta feira a Vereadora Erika Hilton protocola Representação no Ministério Público contra a mudança arbitrária da identidade e logomarca da Fundação Palmares. Confira o texto a seguir:

AO(À) EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) PROCURADOR(A) DA REPÚBLICA

ERIKA SANTOS SILVA (“Representante”), brasileira, vereadora em exercício no município de São Paulo, e-mail:
erikahilton@saopaulo.sp.leg.br, com gabinete na Câmara Municipal de São Paulo – Palácio Anchieta, localizado no Viaduto Jacareí, número 100, 3º andar, sala 304, São Paulo – SP, apresenta

REPRESENTAÇÃO

Em face de FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES (“Representada”, “Fundação” ou “Instituição”), fundação pública vinculada ao Ministério do Turismo, instituída por autorização da Lei nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, inscrita sob o número do CNPJ nº 32.901.688/0001-7, com sede e foro em Brasília, no endereço SCRN 702/703 lotes 02,
04, 06, 08 e 10, Asa Norte, Brasília/DF, CEP 70.720-620, ora representada por seu presidente, Sr. SÉRGIO NASCIMENTO DE CAMARGO, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.

I. DOS FATOS

  1. Em 16 de agosto 08 de 2021, foi lançado o Edital n° 002/2021 (Doc. 01), processo administrativo registrado sob nº01420.100728/2021-95, que tornou pública a abertura das inscrições para o “concurso de criação do novo logotipo e logomarca da Fundação Cultural Palmares (FCP)” (“Edital”). O propósito do certame em referência é promover a substituição dos atuais logotipo e logomarca da Fundação, fundamentados pelo símbolo estilizado do “machado de Xangô”, característico da cultura e da religiosidade afro-brasileira:
  1. O que justifica a presente Representação, mais do que questionar a decisão da fundação pública, é chamar atenção para as verdadeiras razões que a levaram querer alterar a logomarca da Fundação Cultural Palmares. Em 29 de maio de 2021, o presidente da Fundação, em sua página no Twitter (@sergiodireita1), declarou que decidiu alterar o símbolo da Instituição porque este sempre o “desagradou” e por entender ser uma imagem relacionada à religião do Candomblé, supostamente “esquerdista”. Veja imagem coletada no perfil pessoal do gestor:
  1. Em entrevista dada ao portal de notícias Gazeta do Povo , Sérgio Camargo argumenta que a proposta de mudança do logotipo deveu-se ao fato de o Estado brasileiro “ser laico”, não devendo, portanto, utilizar símbolos religiosos como logotipo das instituições a ele vinculadas. Esse argumento torna-se infundado na medida em que são analisados os posicionamentos públicos do referido presidente no sentido de aproximar o aparelho do Estado de suas preferências religiosas, notadamente contrárias às religiões de matriz africana.
  1. Toda a ação para alterar o logotipo da Fundação, com a finalidade de eliminar as representações afro-brasileiras do contexto do Estado, representa uma entre várias manifestações de cunho discriminatório conduzidas pela atual gestão da entidade em face da cultura e da religiosidade de matriz africana, bem como em face de representantes da luta contra o racismo no Brasil. Adiante, alguns exemplos dessas manifestações.
  2. Em junho de 2020, uma reportagem do jornal O Estado de São Paulo revelou um áudio de Sérgio Camargo que, em uma reunião privada com servidores para tratar do desaparecimento do seu celular corporativo, disparou ofensas, acusações e ameaças a militantes do movimento negro e líderes de religiões de matriz africana. Em um trecho das gravações, é possível ouvir o presidente da Fundação Cultural Palmares dizer: “Não vai ter nada para terreiro enquanto eu estiver aqui dentro, zero, nada. Macumbeiro não vai ter um centavo!”.
  3. Em outro momento da mesma reunião, Sérgio Camargo profere críticas às comemorações do Dia da Consciência Negra, ironizando o fato de a Fundação Palmares ter enviado representantes para acompanhar celebrações do orgulho racial com eventos de capoeira no Amapá. Além disso, referiu-se às organizações da sociedade civil que desenvolvem trabalhos em defesa dos direitos da população negra como “escória do movimento negro” .
  1. Em 1º de junho de 2020, em sua conta no Twitter, Camargo defendeu o fim do feriado de 20 de novembro, com a seguinte frase: “Defendo a sua revogação em todos os estados e municípios em que é celebrado! Consciência existe somente uma. A Consciência Humana”. No dia em que a abolição da escravidão completou 132 anos, no dia 13 de maio de 2020, publicou, também em seu perfil no twitter, que Zumbi dos Palmares, líder negro historicamente reconhecido e que dá nome a entidade por ele presidida, não seria um herói autêntico, mas uma “construção ideológica da esquerda”.
  2. Como se vê, o lançamento de edital com o objetivo de alterar o logotipo e a logomarca da Fundação Cultural Palmares deve ser interpretado dentro do contexto maior, em que o atual presidente da Instituição não esconde suas preferências culturais e religiosas que colocam a religião e a cultura afro-brasileiras em uma posição de subrrepresentação e marginalização.
  3. Nesse contexto, é possível notar, ainda, que o lançamento do edital ora em discussão configura, além de um evidente abuso de poder por parte da atual presidência da fundação, a prática de intolerância religiosa, que é veementemente repudiada pela legislação pátria e que deve ser combatida pelas instituições brasileiras que zelam pelo atendimento ao ordenamento jurídico e pela boa gestão pública dos equipamentos do Estado!

II. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

a) Do abuso de poder e dos vícios do ato administrativo referente ao lançamento do Edital

  1. Primeiramente, importa destacar o papel conferido ao Ministério Público pela Constituição da República, de defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis da população (art. 127, da CRFB/88), por meio de medidas extrajudiciais e judiciais, bem como, do exercício de atividades indutoras de políticas públicas.
  1. Na presente demanda, a atuação do Ministério Público assume especial importância por conta do que dispõe a lei criadora da Fundação Cultural Palmares, a Lei Federal n° 7.668/1988:

    Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a constituir a Fundação Cultural Palmares FCP, vinculada ao Ministério da Cultura, com sede e foro no Distrito Federal, com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade
    brasileira.

    Art. 2º A Fundação Cultural Palmares – FCP poderá atuar, em todo o Território Nacional, diretamente ou mediante convênios ou contratos com os Estados, Municípios e entidades públicas ou privadas, cabendo-lhe:
    I – promover e apoiar eventos relacionados com os seus objetivos, inclusive visando à
    integração cultural, social, econômica e política do negro no contexto social do
    País; (…)
  1. Como se vê, a Fundação Cultural Palmares foi construída com uma finalidade bastante específica, de garantir que os valores culturais, sociais, econômicos e políticos referentes à população negra fossem preservados no Estado brasileiro,
    independentemente da gestão responsável pela condução da entidade. Na atual administração, no entanto, sob o pretextos absolutamente irregulares, uma série desses valores tem sido apagados, a exemplo da recente tentativa administrativa de alterar o logotipo e a logomarca da fundação, que faz referência a uma das principais simbologias
    da cultura afro-brasileira.
  2. O Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), no mesmo sentido, categoriza como legítimos a crença e o livre exercício de cultos religiosos de matriz africana, que compreende, por exemplo:

    Art. 24. (…): I – a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins; (…)

    (…) VII – o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões;

    VIII – a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.
  1. Há que se chamar atenção, ainda, que o mero fato de o símbolo “desagradar” o atual presidente da Instituição não configura justo motivo para condução do edital. No presente caso, a publicação do edital motivada por opiniões políticas pessoais e orientações ideológicas por parte do atual presidente da Fundação fere dois dos principais elementos de um ato administrativo – o “motivo” e o “fim”. Com relação ao primeiro elemento, fala-se que o ato administrativo deve ser editado sob circunstâncias de fato e de direito que coerentemente o motivem. Quanto ao elemento “fim”, diz-se que o ato administrativo deve ser editado para produzir um efeito no mundo prático, com o objetivo de obter uma consequência final, sempre traduzido como o “interesse público”. Sobre o tema, Odete Medauar ressalta:

    “O defeito de fim, denominado desvio de poder ou desvio de finalidade, verifica-se quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência (…) Os poderes atribuídos aos agentes visam ao atendimento do interesse público pertinente à matéria em que seus agentes atuam. Não se destinam tais poderes à satisfação de interesses pessoais, de grupos, de partidos, nem são instrumentos de represália, vingança ou favorecimento próprio ou alheio (…)”.
  1. O mesmo raciocínio é desenvolvido por Celso Antônio Bandeira de Mello:

    “O desvio de poder, com alheiamento a qualquer finalidade pública, é um vício que encontra espaço para medrar precisamente quando o agente público está no exercício de competência discricionária. A doutrina caracteriza genericamente o desvio de poder como legitimidade específica desta categoria de atos nos quais a administração dispõe de certa liberdade. No desvio de poder, praticado com fins alheios ao interesse público, a autoridade invocando sua discrição administrativa, arroja-se à busca de objetivos inconfessáveis. É bem de ver que o faz disfarçadamente, exibindo como capa do ato algum motivo liso perante o direito.

    Trata-se, pois, de um vício particularmente censurável, já que se traduz em comportamento insidioso. A autoridade atua embuçada em pretenso interesse público, ocultando dessarte seu malicioso desígnio. Sob a máscara da legalidade, procura, à esconsa, alcançar finalidade estranha à competência possui. Em outras palavras: atua à falsa-fé (…) Dele se pode dizer, com Caio Tácito, que ‘a ilegalidade mais grave é a que se oculta sob a aparência de legitimidade. A violação maliciosa encobre os abusos de direito com a capa de virtual pureza’”.
  1. A manutenção do certame, portanto, configura medida ilegal e lesiva ao patrimônio social e cultural da comunidade negra, sobretudo do ponto de vista técnico, considerando a ausência de justificativas coerentes dadas pelo gestor que está a frente da Fundação Cultural Palmares.

    b) Do racismo religioso e da intolerância religiosa
  2. A religiosidade da população negra cumpre importante resistência cultural e política na sociedade brasileira, em razão das influências socioeconômicas herdadas do sistema escravista, o qual continua a subalternizar as experiências e os modos de vida dos afro-brasileiros – por meio do racismo – impondo um modelo hegemônico de exercício da religiosidade que exclui e/ou criminaliza as tradições ancestrais dos povos de terreiro.
  3. As circunstâncias sociais e históricas demarcam grande quantidade de ataques, discriminações e violências às tradições de resistência do povo negro fora do continente africano.
  1. Uma das maiores referências no campo teórico sobre intolerância religiosa, o mestre e doutor em Linguística pela Universidade de São Paulo, Sidnei Nogueira, argumenta em sua obra “Intolerância Religiosa”, que

    “(…) [a] incitação à intolerância, sobretudo em relação às religiões de matrizes africanas,
    parte de discursos proferidos por pastores, padres e até autoridades políticas. Tudo em
    nome de uma agenda moral transformada em uma crença que se resume ao desejo de se
    encontrar uma solução rápida e mítica – no mau sentido da palavra – para os problemas de
    segurança pública, em busca de uma educação de qualidade, da manutenção de valores da
    suposta família tradicional e de uma política anticorrupção. Se a agenda moral é apenas
    uma ilusão que serve a um proselitismo eleitoral, a violência simbólica é real e segue fazendo
    suas vítimas (…)


    O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma
    crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas
    praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas,
    sobre as crenças e sobre os rituais. Trata-se da alteridade condenada à não existência.
    Uma vez fora dos padrões hegemônicos, um conjunto de práticas culturais, valores
    civilizatórios e crenças não pode existir; ou pode, desde que a ideia de oposição semântica a
    uma cultura eleita como padrão, regular e normal seja reiteradamente fortalecida”.

  2. São denúncias frequentes desse segmento populacional as perseguições históricas contra as lideranças e membros das comunidades de terreiro, como também a imposição cultural branca, sob forma de repressão policial ou dentro dos aparelhos jurídicos, como forma de anular as práticas, ritos e símbolos que expressam a devoção e as cosmovisões
    dessas religiões. Como resultado do racismo, como processo histórico, cujo apagamento da religiosidade negra é central, há um banimento institucional dessas representações tradicionais (símbolos, danças, ritos) que deveriam ser protegidas, pois convivem em condições desiguais de exercícios de direitos, mesmo frente à laicização do Estado.
  1. Por conta disso, é importante problematizar o argumento utilizado pelo Presidente da Palmares sobre as mudanças de representação do elementos da cultura afro-brasileira da instituição, de que a identidade visual, na verdade, fere o “Estado Laico” por ter inspiração no machado de Xangô – Orixá – que é uma divindade cultuada em religiões de matriz africana.
  2. As políticas de promoção da igualdade racial brasileira estão em grande parte voltadas para o combate à intolerância religiosa por conta das especificidades das religiões afro-brasileiras. Contudo, o contrário está sendo executado pela Fundação Palmares na rejeição de símbolos culturais de resistência da população negra ao realizar a abertura de concurso para a mudança de logo, expressando uma oposição à contribuição das religiões de matrizes africanas como símbolos que constituem a nação brasileira.
  3. O edital que prevê a mudança de logo da Fundação Cultural Palmares assume uma perseguição aos valores da instituição, sob orientação de uma agenda de violação simbólica das representações tradicionais. Como parte do sistema, a violência simbólica contra as religiões de matriz africana assume o papel de esvaziar a promoção e a
    valorização dos conhecimentos tradicionais, reduzindo o diálogo sobre o combate ao racismo e às desigualdades raciais nas interações da população com os espaços públicos e os equipamentos culturais. Essa categoria de violação é uma das facetas do racismo estrutural, por isso, a condução de um concurso para a logo da Palmares configura ameaça às expressões religiosas das tradições afro-brasileiras.
  1. Para compreender a intensidade e a especificidade pelas quais a violência se organiza sobre os símbolos, ritos e rituais das religiões de matriz africana, precisa-se entender a relação entre a inferiorização do legado do povo e do movimento negro, sobretudo na subalternização do que esse grupo produz à luz da negação do patrimônio cultural e religioso do movimento negro para o Brasil como parte da política de governo sendo executado nessa conjuntura do país, explícita nas declarações do Presidentes da Palmares, Sérgio Camargo.
  1. A negação da participação do complexo cultural, ancestral, religioso, de existir e se constituir no mundo, como pessoas negroafricanas, ou aqui especificamente, afro-brasileiras, na formação do Brasil, resumem como o processo de escravização perverteu a formação da sociedade brasileira, deixando raízes de discriminação racial que temos como tarefa civilizatória superar.

III. CONCLUSÃO E PEDIDOS

  1. Com base no quanto exposto, requeiro o recebimento da presente representação, a fim de que esta r. Procuradoria promova a abertura de inquérito civil para:

    a. Intimar a Representada para que preste informações a respeito das manifestações públicas conduzidas pelo seu presidente que indicam prática de ato administrativo irregular e sem motivação referente ao lançamento do Edital n° 002/2021, da Fundação Cultural Palmares;

    b. Avaliar a pertinência de ações que venham a suspender a continuidade dos trâmites relativos ao Edital n° 002/2021, da Fundação Cultural Palmares, ao menos até que a sociedade civil tenha a oportunidade de contribuir ativamente para a tomada de decisão para substituir o logotipo e a logomarca da Instituição, por meio de audiências e consultas públicas, de acordo com o artigo 29, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/1942); e

    c. Apurar eventual responsabilidade do Sr. SÉRGIO NASCIMENTO DE CAMARGO pela prática de ato de racismo religioso e intolerância religiosa, a partir de suas manifestações públicas relacionadas às religiões de matriz africana, somadas ao recente lançamento do Edital n° 002/2021, da Fundação Cultural Palmares.

São Paulo, 20 de outubro de 2021.

Erika Santos Silva
Vereadora de São Paulo/SP